A história da tradução é contada, comumente, a partir do ofício dedicado de São Jerônimo, em 386, que entregou ao ocidente a Vulgata – versão latina da Bíblia. Na verdade, é difícil e contraditório tentar chegar a um acordo acerca das primeiras traduções na história. Podemos falar em poemas da antiga Mesopotâmia, mapas de navegação emprestados de outras culturas, escrituras antigas em diferentes meios, monges budistas que viviam sua experiência religiosa e filosófica em mais de um país e, portanto, conseguiam traduzir textos de um idioma para o outro, eclesiásticos, pintores, artistas e diversas outras classes de profissões que foram desempenhadas ao longo dos séculos.
A tradução literária também sempre teve seu papel de relevância, não apenas por transmitir a narrativa original em um ou mais idiomas estrangeiros como, também, por levantar debates acerca do papel dos profissionais da tradução: traidores ou tradutores?
No livro de Mark Polizzotti, o autor inicia esse debate perguntando se a tradução é, para início de conversa, possível. Além disso, a leitura vai nos apresentando as formas pelas quais um trabalho de tradução é bem realizado, considerado dispensável, bonito, distante ou fiel ao original, bem como cita diversos escritores cujas obras viajaram pelo mundo graças ao trabalho dos tradutores.
Não pretendo focar muito nesses questionamentos. Porém, eles são úteis quando paramos para pensar sobre as similitudes e diferenças da tradução e da localização – um ramo mais atual, que envolve tecnologia, pensamento criativo, ferramentas de automação, design, experiência do usuário e tantos outros fatores que, à primeira vista, parecem não se relacionar com a tradução.
É preciso ter simpatia pelo traidor, o que já fica evidente na capa do livro mencionado. Seria ingênuo pensar que um livro, matéria ou qualquer outro tipo de documento não seja influenciado pela compreensão da realidade da pessoa que se dedica a transmiti-lo em outro idioma. Por outro lado, seria preocupante encarar a tradução como um exercício livre de escrita, que não se atém às intenções do autor ou da autora (ou, pelo menos, que não se preocupa em as considerar) e que tem plena liberdade para entregar um produto final com tom de voz, estilo de escrita e experiência completamente diferentes do que aqueles aspectos com os quais os leitores da obra original se deparam.
Há diferentes abordagens em uma formação nessa área – e, naturalmente, não conheço nenhuma que se restrinja à tradução literária, pois os campos de atuação são, cada vez mais, diversos e estão em constante mudança. A minha formação foi bastante prática, com certa introdução a teorias tradutórias e quase nenhum debate filosófico sobre o tema. Mas os meus interesses pessoais me levaram a buscar esse outro entendimento e, hoje, após quase dois anos atuando na localização, consigo entender a origem do meu interesse crescente não só pela filosofia que circunda o que faço como, também, um desejo de trabalhar com projetos mais criativos.
Minhas aulas consistiam em uma explicação sobre a especialidade que seria trabalhada naquela parte do curso e, a seguir, recebíamos uma quantidade considerável de exercícios práticos de gramática, tradução, versão e revisão. Talvez, por ter aprendido desse jeito, não consigo assimilar as vertentes mais “puristas” que defendem uma fidelidade inexorável ao texto original. Como isso seria possível se as próprias correções, escolhas de exercícios, temas, especialidades e expressões empregadas são, em si, subjetivas?
Acho necessário fazer uma breve explicação sobre o que estou dizendo: a tradução de um relatório repleto de números a ser apresentado para investidores de um fundo é completamente diferente da tradução de um artigo de blog que se destina a captar novos clientes.
Até recentemente, falávamos em um conteúdo que fosse acessível a nível global. Isso, muitas vezes, implicava dizer que o inglês era a língua mais entendida no mundo e que isso era suficiente para alcançar pessoas de diferentes países. A expansão da internet e da digitalização da realidade e dos processos de trabalho vem provando, desde o começo do século XXI, que um impacto global só é alcançado se, antes, passar por um entendimento local de cada cultura.
Com as mídias que surgiram como resultado desse fenômeno, a vida de todos nós passou a acontecer, em parte, no mundo virtual. Redes sociais, fóruns de discussão on-line, jogos, plataformas de streaming e muitos outros tipos de entretenimento cresceram exponencialmente e, com eles, sentiu-se a necessidade de falar com os usuários desses serviços e produtos não apenas em seu idioma nativo, como também fornecendo recursos visuais e experiências que se relacionassem com a sua vida cotidiana. Começamos a falar, portanto, da localização.
A localização começou de forma paralela à globalização – e foi se adaptando conforme as novidades de cada momento. Muitos falam dela desde 1980, mas, hoje, há um entendimento maior sobre a importância e o escopo dessa indústria. Como se não bastasse a aceleração imparável dos desenvolvimentos tecnológicos, a pandemia de covid-19 intensificou e trouxe maior visibilidade à área.
Partindo disso, vamos às diferenças da tradução e da localização: a primeira se destina a traduzir a mensagem; a segunda, em proporcionar uma experiência otimizada aos usuários daquele produto, aplicativo ou site. Na experiência digital, a adaptação da mensagem faz parte do processo, mas é apenas o ponto de partida de uma boa localização. Adaptam-se cores, imagens, emojis, termos de consentimento, leis locais e mundiais, a apresentação do texto em um determinado espaço e necessidades específicas de cada mercado.
E quais são as semelhanças? Há muitas. Em ambos os casos, deve-se priorizar o público-alvo, considerando unidades de medida, números, formatos, datas, entre outros. Gírias, dialetos, preferências culturais e regionais e contexto, de forma geral.
O que isso tudo tem a ver com a evolução da tradução? Na verdade, proponho uma reflexão sobre o debate inicial. Qual é o papel dos tradutores e das formações atuais dessa área em um mundo cada vez mais digitalizado e dependente da localização? Qual o futuro dos profissionais qualificados na tradução e qual o dever das universidades e cursos que se dedicam a formar futuros tradutores?
A localização é, por si só, um exercício criativo, assim como a própria natureza humana. Acredito que se tivéssemos um maior entendimento sobre os desdobramentos do nosso ofício, teríamos ainda mais recursos e possibilidades de descoberta na nossa carreira. Devemos, sim, ter a responsabilidade de nos debruçarmos sobre o conteúdo original e as possíveis intenções daquele material. Ao mesmo tempo, sinto a necessidade de estar, constantemente, trazendo a localização para a tradução (e não o contrário), pois é realmente muito prazeroso acessar jogos, aplicativos e sites pensados para o público brasileiro, por exemplo, e sei que há muitas mentes brilhantes que poderiam ser mais bem aproveitadas, desde a sua formação, caso houvesse um maior esclarecimento sobre a urgência de aceitarmos que a tradução nunca foi e nunca será uma reprodução exata do original. Se fosse assim, desistiríamos de ler livros pela metade (como já fiz) após capítulos e capítulos de expressões idiomáticas e construções frasais esquisitas.
Aliás, é isso que acontece quando não pensamos em nossa própria cultura, quando não filosofamos sobre o nosso próprio trabalho e quando não abraçamos o novo, as tecnologias e inovações como parte intrínseca da nossa evolução. Somos seres com alto potencial de criação, imaginação e representação de todas essas ideias. Não vejo maneira de seguirmos trabalhando sem honrar os esforços de São Jerônimo, dos monges budistas e dos milhares de artistas que viveram, pelo menos, em duas culturas e puderam transmitir essas experiências por meio da escrita, com criatividade e subjetividade. Tampouco penso que seja possível permanecer nessa indústria sem uma constante atualização, reflexão e olhar sincero com relação à nossa própria natureza. Espero que esse breve debate seja uma fagulha de inspiração para todos que se perguntam o que virá a seguir!
— Bruna Beatriz Gabriel
Para saber mais sobre diversas perguntas que recebemos sobre as áreas de tradução, interpretação e revisão, leia este post.