Como bem sabemos, o português não era a língua falada no Brasil antes da chegada dos portugueses.
Em 21 de fevereiro, comemora-se o dia Internacional da Língua Materna. Segundo dados das Nações Unidas, cerca de 40% da população global não tem acesso à educação em uma língua que falam ou entendem. O dia comemorativo se dedica a pensar no assunto sob uma abordagem multilíngue para maior inclusão, especialmente das crianças, em uma fase tão importante quanto a pré-escolar.
Apesar de não ser esse o foco do artigo, a data me ajudou a construir a linha de raciocínio que precisava para dar sentido à minha língua materna: o português. Como bem sabemos, o português não era a língua falada no Brasil antes da chegada dos portugueses. Somos o único país da América Latina que não fala espanhol, mas temos influências hispânicas. A UNESCO fomenta e promove a educação multilíngue com base na língua materna ou primeira língua.
A origem do que chamamos, hoje, de Brasil, remonta aos povos indígenas. Segundo a Funai (https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2022-02/brasil-registra-274-linguas-indigenas-diferentes-faladas-por-305-etnias) o país registrou, em 2022, 274 línguas indígenas diferentes, faladas por 305 etnias.
Isso, também, é multiculturalismo. Isso é reconhecimento das nossas origens e da formação do nosso país. Meu ponto de partida era buscar entender um pouco mais sobre o gingado brasileiro na fala, visto que, enquanto tradutora, o jeito que falamos, nossas expressões idiomáticas, a própria evolução da língua (que, diga-se de passagem, já é bastante distante do português de Portugal) e as gírias usadas, atualizadas e importadas são essenciais para entender o país em que nasci.
O momento também é propício para refletir sobre a nossa brasilidade, considerando a época de carnaval e outras formas de expressão que vemos, especialmente por vias artísticas e mais visuais. As imagens, ou a visualização do que escrevo, também representam, vividamente, essa flexibilidade da nossa linguagem: cheia de cores, formatos, tamanhos, modelos e crenças – religiosas ou não.
Celebrar, relembrar e compartilhar informações sobre a nossa língua materna é uma maneira de “combater” estrangeirismos (que não são vilões e têm usos válidos, dependendo de cada contexto), que podem ser driblados com soluções engenhosas, oferecidas pelo nosso próprio vernáculo 😀
Voltando aos fatos históricos: o português foi originado a partir do latim, assim como o francês, o italiano, o romeno e o espanhol. Esses povos também foram dominados pelos romanos, que tinham a língua latina como língua materna. Desde a colonização (invasão) dos portugueses, por volta de 1.500, o português é, portanto, nosso idioma oficial!
Mas nossa história linguística não se resumo a isso. A língua portuguesa brasileira também foi influenciada pelas línguas tupis (indígenas) e banto (africana). O tupi era a língua mais falada no Brasil até o século XVIII, quando o português foi imposto pela metrópole. Temos muitas palavras originadas nas línguas dos povos indígenas e africanos que estiveram presentes no país, desde o seu início, e que enfrentaram muita brutalidade e exterminação.
Sendo assim, a data mencionada, inicialmente, é uma ótima razão para celebrarmos a mistura, musicalidade, conexão com a natureza, diversidade e adaptabilidade que o povo brasileiro carrega em sua história. Quer ver como há palavras enraizadas nesse multiculturalismo, até hoje?
Quem aí já comeu mingau, brincou de peteca ou viu uma perereca? Quem conhece o tamanduá, já carregou muamba ou conheceu um carioca?
Todas essas palavras são de origem tupi:
- Mingau: minga’u, comida que gruda;
- Peteca: pe’teka, bater com a palma da mão;
- Perereca: pere’reka, significa “indo aos saltos”;
- Tamanduá: tá-monduá, caçador de formigas, sua presa;
- Muamba: vem de “quimbundo muhamba”, cesto comprido usado para transportar cargas em viagem;
- Carioca: kari’oka significava casa (oka) do homem branco (kari).
Nem todas as palavras permaneceram com o mesmo sentido que tinham originalmente. Todos sabemos que o processo natural de idiomas, dialetos, gírias e seus falantes é o de atualização, modificação segundo os tempos em que se vive.
Há mais de 20 mil verbetes indígenas na nossa língua. Além disso, os povos africanos, trazidos na condição de escravos, em sua grande maioria, também tiveram uma contribuição imensurável para a língua que falamos no Brasil. Não só para a língua, como para a música, a arte, os instrumentos, a culinária e muito mais.
Para quem gosta de vídeos, veja, aqui, alguns exemplos de palavras que vêm, principalmente, do idioma banta. Confesso que algumas das minhas palavras preferidas são de origem africana, e eu só descobri recentemente.
Quem tem coragem de dizer que dengo, cafuné, caçula, fubá, axé e, por que não, abadá não causam um quentinho quase que instantâneo no coração? A origem delas já foi muito bem explicada, neste artigo que encontrei: https://pt.babbel.com/pt/magazine/15-palavras-do-dia-a-dia-dos-brasileiros-que-sao-herancas-africanas.
Os acontecimentos recentes e, mesmo após séculos, brutais com um dos nossos povos indígenas que guardam grande parte da sabedoria da floresta me aproximaram muito da origem do meu país natal. A brutalidade, violência e dominação não se limitam a esses povos e, tampouco, são algo novo. Falar da nossa história é uma das diversas maneiras de não deixar a memória nos enganar.
Esse tipo de data, como o dia Internacional da Língua Materna, não precisa ser algo para ser marcado no calendário e esquecido por mais um ano inteiro. Gosto muito de usar essas ocasiões como lembretes para olharmos para a nossa história, pensarmos na evolução de um país, os desdobramentos da nossa língua e como isso tudo se reflete no nosso jeito de ser.
Vai ver é porque sou imigrante (há quase 3 anos), mas nunca havia me interessado tanto por saber de onde vim, onde estou e para onde quero ir. Percebo que, mesmo falando outras línguas, minhas escolhas na hora de me comunicar refletem muito a brasileira que sempre existirá dentro de mim: adaptável, calorosa, com gingado (ainda que mais com as palavras do que com o corpo) e flexível.
Deixo um espaço aberto para o diálogo, a troca de experiências e a futura possibilidade de debater as origens latinas, gregas e europeias do nosso idioma. É que elas são mais comumente discutidas e tem me cativado, um pouco mais, olhar para a ancestralidade de tudo que é parte minha.
Agradeço pela companhia durante essa breve viagem na história do nosso português brasileiro. Quem escreveu foi uma amante de línguas, história, literatura e cultura.
Bruna Beatriz Gabriel
Para saber mais sobre diversas perguntas que recebemos sobre as áreas de tradução, interpretação e revisão, leia este post.